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No fim de janeiro, um gerente de projetos de uma consultoria de tecnologia de Teresina (PI) viralizou no Twitter ao contar que perdeu dois funcionários para empresas estrangeiras. “Ambos são jovens, um aliás tem 23 anos, vão ganhar de R$ 30 mil a R$ 45 mil, contando a conversão do dólar, trabalhando em home office – em Belém (PA) e Sete Lagoas (MG)”, disse este gestor ao Valor. Desde outubro, cinco profissionais de sua empresa, a maioria desenvolvedores, aceitaram propostas semelhantes. “Nós pagamos salário competitivo, de R$ 13 mil a R$ 15 mil para seniores, oferecemos flexibilidade e benefícios, mas enquanto o real estiver desvalorizado assim, não vejo como empresas brasileiras reterem esses talentos.”

Recrutadores e diretores de tecnologia ouvidos pelo Valor confirmam esse assédio estrangeiro, intensificado em 2021 com a consolidação do modelo de trabalho remoto. “Temos muitos clientes americanos e europeus nos procurando para contratar profissionais aqui no Brasil, de forma remota, e esta é uma tendência que não deve diminuir”, diz Ricardo Basaglia, diretor geral da consultoria de recrutamento PageGroup.

“O trabalho remoto ampliado na pandemia abriu as portas para a internacionalização desses profissionais e o avanço da digitalização em negócios do mundo todo causou uma demanda desenfreada”, diz Ricardo Morale, CTO da startup de logística Freto. O perfil mais demandado, afirma Basaglia, é o de desenvolvedor sênior – com bom nível de comunicação em inglês, ao menos cinco anos de experiência e capacidade de trabalhar remotamente com autonomia.

“Nos empregos remotos, para essas empresas estrangeiras, a maioria não está querendo formar o profissional, querem que você preste serviço para elas. A experiência vale bem mais que o “seu potencial de aprender””, diz Matheus Fantinel. Aos 26 anos, ele é desenvolvedor de aplicativos web, tem oito anos de experiência profissional e trabalha desde 2019 para empresas de fora, de sua casa, em Caxias do Sul (RS). Com a pandemia, no começo de 2021, trocou de trabalho, mas manteve o mesmo formato: home office e prestação de serviços, recebendo por hora, para uma empresa de fora.

O modelo de “contractor”, sem vínculo empregatício formal, vem sendo aderido por muitos desenvolvedores brasileiros. “A diferença salarial recebendo em dólar é inegável. Mesmo comparando com contrato CLT, que tem FGTS, e pensando que é preciso abrir empresa, pagar contador e garantir todos os benefícios para si, continua valendo muito a pena.” Ele diz que recebe, em média, quatro propostas de trabalho por semana – sendo 50% de empresas estrangeiras.

Esse movimento também é percebido por Humberto Castro. O desenvolvedor de 26 anos, nascido na periferia paulistana, é filho de professora de escola pública e começou a programar aos 13. Fez um técnico no Senai e trabalhou desde cedo para bancar o curso de ciência da computação no Senac. A partir de uma parceria desta instituição, ingressou no Apple Developer Academy, centro de treinamento da Apple para formar desenvolvedores para trabalhar com os produtos da empresa, como iPhone e iPad. “Essa experiência amplificou minha carreira e abriu portas em consultorias e startups.” A pandemia, porém, o fez desapegar do modelo presencial de trabalho, que ele adorava, e a possibilidade de buscar propostas do exterior para atuar em home office fez sentido. Reforçou o inglês, trabalhou o SEO e as tags de seu Linkedln e começou a entrar no filtro dos recrutadores gringos.

Em outubro de 2021 foi contratado como “contractor” pelo provedor de pagamentos americano PayPal. “No começo tive desafio de me comunicar com times do mundo todo, mas fui aprendendo e continuei estudando.” Passada a adaptação com as reuniões fora do fuso brasileiro e entendido o modelo de trabalho americano – ele responde para um gerente, que avalia sua participação em projetos, e interage com um “tech lead”, que auxilia em questões técnicas -, Castro diz que tem aproveitado a flexibilidade de alocar suas horas de trabalho. “Hoje, cuido mais da alimentação, vou fazer exercício na academia em um horário que não tem ninguém, foco mais na saúde, tanto física quanto mental, e consigo ajudar minha família.” Seu salário anual atual, pago em dólar, é o dobro do que recebia antes. “Ganhar em moeda estrangeira te deixa mais próximo da liberdade financeira.” Ele afirma, porém, que há uma certa glamourização na área de tecnologia hoje e que para ganhar cifras que enchem os olhos é preciso estudar, ter experiência e muito conhecimento.

“Os brasileiros estão ganhando fama como bons desenvolvedores, em um nível próximo à fama que os indianos têm”, avalia Morale, CTO da Freto. Nesta competição global de talentos em tecnologia, o Brasil também se vê diante de uma escassez ainda maior desses profissionais. O último estudo da Brasscom (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação), divulgado em dezembro, indicou que o país precisará de 797 mil profissionais de tecnologia nos próximos cinco anos, contabilizados a partir de 2021. “Do total da demanda projetada, 70,7% englobam profissionais voltados diretamente ao desenvolvimento de tecnologias (da computação em nuvem e web mobile até o blockchain) e tratam-se de programadores, gerentes de produto, de projeto, especialistas em nuvem e em redes de comunicação”, diz Sergio Paulo Gallindo, presidente executivo da Brasscom.

Ele compara a busca frenética por desenvolvedores, principalmente web mobile, com a que viu em sua carreira, nos anos 90, por engenheiros de rádio-frequência, para a montagem das primeiras redes de celulares, e mais à frente, no começo de 2000, por profissionais especializados em protocolo IP, com o avanço da internet em grande escala. “No ano passado, a projeção que tínhamos de contratação foi superada em 118% e terminamos com 149 mil novas contratações até novembro, muito impulsionadas pela transformação digital provocada pela covid”, diz Gallindo.

Ele diz que muitos CEOs das 85 empresas associadas têm reclamado que o assédio das empresas estrangeiras vem incomodando. “A chiadeira aumentou.” O desenvolvedor full stack Igor Santos, que trabalha com programação desde 2008 e há seis anos atua para empresas estrangeiras, diz que desativou seu perfil no Linkedln. “O assédio de recrutadores aumentou demais.” Hoje, ele trabalha na e Hungry, empresa americana de sistemas de pagamentos on-line para restaurantes, e atua também como líder de comunidade voluntário na Toptal, empresa americana que faz o “match” entre profissionais de tecnologia com empresas que precisam contratá-los para projetos. Santos já foi contratado da empresa e hoje promove conversas para falar de sua experiência trabalhando de sua casa, no centro do Rio de Janeiro, para empresas do exterior.

Em sua visão, muitos desenvolvedores brasileiros não levam em conta um planejamento financeiro para lidar com as flutuações do dólar e a intermitência de projetos, além de não considerarem a adaptação de cultura, necessária quando se trabalha para uma empresa de outro país em termos de interação social, convívio e feedbacks. Ser prestador de serviço para uma empresa de fora também pode envolver, em muitos casos, a não existência de férias remuneradas. Santos, porém, diz que esse modelo é extremamente válido para quem já possui alguma experiência na área e que, na ponta do lápis, vale muito a pena. “Com o dólar como está hoje, está absurdo. Já estou em uma fase em que estou construindo patrimônio.” Em termos de carreira, ele diz que se vê evoluindo por ter trabalhado várias vezes com tecnologias novas e de ponta, em diversas frentes da concepção de um produto ou serviço digital, e pela sensação de aprender mais a cada projeto que ingressa. “Não entendo progressão de carreira como subir na hierarquia”, conclui.

Estratégia de retenção prioriza o aprendizado

Oferecer planos de carreira estruturados, garantir acesso a inovação e sistemas de ponta e promover uma cultura que preza por aprendizado, autonomia e flexibilidade estão entre as estratégias das empresas brasileiras para atrair e reter profissionais de TI.

É um “combo” que pode ajudar a fazer frente ao assédio de empresas do exterior por desenvolvedores do país e que pagam em moeda estrangeira. “Antes da pandemia, a hora de um desenvolvedor girava em torno de R$ 85 ou R$ 90. Hoje, pagamos de R$ 120 a R$ 150. Não dá para aumentar muito mais, então hoje, mais do que nunca, precisamos ser criativos na atração e retenção”, diz Ricardo Morale, CTO da Freto, startup do setor logístico. “Para gerar o engajamento, precisamos mostrar por que existimos, o que queremos mudar, e criar uma cultura onde eles sintam que têm liberdade para atuar e executar.” No ZRO Bank, banco digital que permite movimentar bitcoin, a oferta de trabalho e aprendizado em blockchain tem sido um diferencial para atrair desenvolvedores, diz o CTO André Aziz. “Há um grande interesse de muitos por conhecer essa tecnologia e entender como criar produtos nela. Oferecemos isso e treinamento em web 3.0, inclusive para fornecedores e parceiros.” O banco realizou ajustes salariais na casa dos 50% em 2021, como forma de reconhecer os mais qualificados.

No Localiza Labs, área de inovação da Localiza que cresceu de 700 para 1.000 profissionais em um ano, a estratégia de retenção está centrada em construir um ambiente que gere autonomia, seja ágil e ofereça desenvolvimento. “Tem empresa que acha que o profissional de tecnologia está ali para apertar parafuso do negócio, mas ele só fica se sentir que é valorizado, que pode experimentar sem medo, e tenha chance de trabalhar com tecnologias novas”, diz o CTO André Petenussi.

A empresa também vem promovendo uma interação maior com a comunidade de desenvolvedores e criou até um podcast para falar diretamente com ela. Dentro da universidade corporativa, há uma trilha específica para desenvolvimento de carreira em tecnologia. “Essa trilha não existia há três anos e surgiu porque há muitas posições de especialistas e técnicos que não são de gestão. Era preciso que esses profissionais continuassem ganhando desafios e sentindo a progressão, inclusive financeira, como sentem aqueles que sobem como gestores. Isso cria a retenção.”

Petenussi diz que a Localiza vê o assédio de empresas estrangeiras como um fator adicional e não preponderante. “A gente já viu casos de gente saindo para trabalhar home office para empresa de fora, mas não tem sido um problema de turnover hoje.” Na visão de Eduardo Drummond, sócio da consultoria de recrutamento Signium, o caminho da retenção para profissionais de TI perpassa por ter uma empresa que saiba se vender como “vitrine do mercado”, em termos de oportunidades, inovação, liderança e valorize, de fato, com promoções claras. Exigir um modelo de trabalho mais presencial é um tiro no pé, na opinião de Ricardo Basaglia, diretor geral do PageGroup, de recrutamento. “A primeira coisa que os candidatos de tecnologia perguntam é se há home office.” Questionado se profissionais mais qualificados e experientes de TI estão pedindo mais do que as empresas no Brasil podem entregar, o recrutador diz: “Em recrutamento, quem tem o ouro faz a regra. Nas áreas que faltam candidatos, eles é que têm mais poder de escolha. E, hoje, eles podem trabalhar para qualquer lugar sem sair do Brasil”.

Fonte: Valor Econômico

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