A pandemia de Covid-19 e as restrições impostas pela mesma tiveram um forte impacto em crianças e jovens. É o que mostra um relatório da comissária da Irlanda do Norte para crianças e jovens (NICCY, na sigla em inglês), Koulla Yiasouma, realizado com base em um levantamento conduzido no país. Mais da metade (52%) dos jovens de 16 anos que participaram da pesquisa sentiu que sua saúde mental e emocional piorou durante a pandemia. E, de acordo com o relatório, foi dada atenção insuficiente a como a vida das crianças e dos jovens seriam afetadas.
Os aspectos levados em consideração no relatório incluem educação, saúde física e mental e bem-estar. Mas o documento lembra que algumas medidas restritivas foram necessárias para proteger a população da propagação do vírus. O impacto de longo prazo da pandemia na saúde mental de crianças e jovens tem o potencial de ser significativo, especialmente se o apoio e a intervenção apropriados não forem fornecidos, alerta.
O relatório, intitulado A New and Better Normal (um Novo e Melhor Normal, em tradução livre) também destaca que muitas das desigualdades existentes aumentaram. As descobertas são baseadas nas respostas de 4.385 jovens por meio de questionários e grupos focais. Algumas ecoam preocupações levantadas anteriormente em outros lugares.
Um relatório da instituição britânica National Children s Bureau havia dito previamente que famílias de crianças com necessidades educacionais especiais e deficiências se sentiram esquecidas na resposta à pandemia de Covid-19. Muitas terapias e serviços essenciais dos quais elas dependiam foram suspensos e não retornaram totalmente.
O relatório da Irlanda do Norte chama a atenção, por sua vez, para a suspensão generalizada de serviços e seus efeitos sobre as crianças. Muitos serviços presenciais nos primeiros anos de vida, para crianças de 0 a 3 anos e suas famílias, foram suspensos. “O risco de aumento de problemas emocionais ou comportamentais em crianças menores devido à pandemia é uma preocupação”, afirma Koulla Yiasouma em seu relatório.
Os profissionais de saúde foram realocados para fornecer cuidados e serviços relacionados à Covid-19, resultando em uma redução no número de avaliações de saúde e visitas domiciliares. As reduções nas consultas, além das restrições no acesso a outros serviços para a primeira infância, retiraram um importante sistema de apoio para os pais, particularmente mães de primeira viagem e aquelas de grupos menos favorecidos.
Mais de um quarto (27%) dos jovens ouvidos na pesquisa também disse não ter conseguido obter tratamento médico durante a pandemia para um problema de saúde não relacionado ao coronavírus. Um jovem que participou dos grupos focais perdeu a mãe durante a pandemia e teve dificuldade em obter apoio para lidar com o luto. “Sim [procurei apoio para o luto], mas há uma lista de espera e meu palpite é que seja tão longa quanto o rio Amazonas”, disse ele aos autores do relatório.
Também foram proibidas por alguns períodos as visitas externas a jovens no Centro de Justiça Juvenil, inclusive de familiares. As barreiras existentes enfrentadas por crianças com deficiência ou necessidades de saúde complexas no acesso a suporte e serviços pioraram significativamente durante a pandemia , observa o relatório.
Em um estudo complementar realizado por acadêmicos da Queen s University de Belfast, na Irlanda do Norte, em nome da NICCY, vários especialistas também manifestaram sérias preocupações em relação à segurança de crianças e jovens durante a pandemia. Preocupações relacionadas haviam sido levantadas anteriormente pelo Safeguarding Board da Irlanda do Norte.
Culpados por espalhar o vírus
Os jovens também se sentiram negativamente estereotipados e acusados de espalhar o vírus, de acordo com o relatório. O texto afirma que 585 notificações foram emitidas pela polícia para menores de 18 anos por violações dos regulamentos de proteção sanitária do coronavírus em 2020-21. Embora as histórias na mídia sugerissem que essas violações eram comuns, a grande maioria das crianças e jovens aderiu rigorosamente aos regulamentos e diretrizes emitidos, esclarece o relatório.
Apesar disso, crianças e jovens afirmam que se sentiram demonizados e discriminados por adultos quando se encontravam em público, à medida que as restrições eram flexibilizadas. Muitos se sentiram julgados e como bode expiatórios quando se encontravam com amigos em espaços públicos. Várias crianças e jovens disseram ainda que se sentiram solitários e presos durante os lockdowns e devido às restrições.
“Fica claro a partir das crianças e jovens com quem interagimos por meio de questionários e grupos focais como as amizades e o desenvolvimento de relacionamentos são importantes ao longo da infância e na adolescência, e quão profundamente eles sentiram as restrições em suas interações sociais”, acrescenta o texto.
Os dados da pesquisa mostram que o declínio nas atividades lúdicas, recreativas e de lazer teve um impacto devastador na saúde física e no bem-estar emocional de muitas crianças. O relatório da NICCY afirma que todos os esforços devem ser feitos para garantir que as atividades escolares, como esporte, música, clubes e teatro, possam ser realizadas.
A grande maioria das crianças também ficou fora da escola, dependendo do ensino remoto, de março a junho de 2020 e novamente de janeiro até a Páscoa de 2021. O relatório destaca que isso teve um impacto especialmente sobre as crianças de famílias de baixa renda.
Crianças pobres são particularmente afetadas
Crianças em situação de pobreza foram identificadas como sendo particularmente afetadas pela mudança para o ensino online, já que eram mais propensas a não ter acesso a um dispositivo digital apropriado ou acesso online, diz o relatório. Elas também eram mais propensas a morar em acomodações que não tinham espaço interno ou externo adequado para estudar e praticar atividades recreativas durante o lockdown.
O fechamento contínuo das escolas sem dúvida exacerbou as desigualdades educacionais que eram bem documentadas antes da pandemia. A pesquisa conduzida para o relatório da NICCY mostrou que 41% dos entrevistados do sétimo ano (10-11 anos) e 52% dos jovens de 16 anos sentiram que sua saúde mental e emocional piorou durante a pandemia. Um amplo estudo realizado antes da pandemia já havia revelado que a ansiedade e a depressão eram 25% mais comuns em crianças e jovens na Irlanda do Norte, em comparação com outras partes do Reino Unido.
O relatório da NICCY afirma que o governo da Irlanda do Norte agiu mais rápido ao ajudar as famílias com direito a merenda escolar gratuita do que outros governos no Reino Unido. No entanto, esta foi uma rara observação positiva.
“À medida que saímos da pandemia, mais crianças e jovens e suas famílias estão vivendo na pobreza, as listas de espera na saúde são inaceitavelmente longas, muitos tiveram sua educação prejudicada devido à falta de acesso a equipamentos digitais, crianças em abrigos e outros grupos vulneráveis não receberam o apoio que precisam”, diz o relatório.
O documento inclui uma série de recomendações e afirma que bebês, crianças e jovens deveriam ser priorizados no plano do governo da Irlanda do Norte para recuperação da Covid-19.
Enquanto isso, no Brasil…
No Brasil, a pandemia também acentuou as desigualdades na educação. Um ano após o início da pandemia, muitos alunos ainda não têm acesso à internet ou a dispositivos para estudar online. Enquanto redes e alunos com mais estrutura avançaram (mesmo que com percalços) no ensino remoto, uma parcela dos alunos e de locais mais carentes não conseguiu se manter conectada e foi perdendo tanto conteúdo quanto entusiasmo pelos estudos.
Ao mesmo tempo, cresceu o percentual de jovens estudantes que procuram emprego em decorrência da crise econômica agravada pela pandemia – o que alimenta a preocupação de que a falta de dedicação exclusiva aos estudos possa reduzir o acesso ao ensino superior.
Um estudo mostrou que jovens que perderam conteúdo escolar entre 2020 e 2021 podem ter uma perda de renda futura que, se somada, pode passar de R$ 700 bilhões – podendo chegar a R$ 1,5 trilhão caso nada seja feito para mudar essa trajetória.
Fonte: Correio Braziliense online