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Sabemos que mudanças profundas podem ser geradas e aceleradas a partir de eventos inesperados que afetam grandes parcelas da população humana. É possível afirmar que a crise do coronavírus transformará inúmeros aspectos da vida, inclusive o sistema educacional. Quando escrevo este texto, a pandemia impôs o distanciamento social a mais de 1 bilhão e 600 milhões de estudantes e professores em todo o mundo, que ficaram impedidos de frequentar os espaços físicos de escolas e instituições de educação superior.

A migração abrupta dessas comunidades de aprendizagem para o universo digital trouxe à tona uma série de desafios. Há limitações graves, especialmente para alunos e professores mais empobrecidos, muitos deles localizados em regiões limítrofes das grandes cidades ou na zona rural. Faltam computadores, aparelhos de telefonia móvel, softwares e Internet de boa qualidade, dentre outros recursos. Pessoas com deficiências físicas não têm conseguido acompanhar as aulas remotas e desenvolver as atividades propostas, que não foram adequadas para permitir o acesso universal.

A inédita interdição ao espaço físico de instituições educacionais levou gestores e professores a adotarem soluções digitais e tentarem imitar o que acontece em uma sala de aula presencial. É admirável ver os esforços descomunais de muitos estudantes, famílias, docentes e funcionários que se juntaram para tentar diminuir os impactos negativos do confinamento.

Porém, fica claro que a educação a distância (EAD) de boa qualidade não é possível com a simples emulação dos processos praticados no presencial. Há 25 anos de pesquisa e desenvolvimento da EAD on-line que demonstram que a aprendizagem por esses meios requer um trabalho cooperativo, alcançado por equipes que incluem professores, designers instrucionais, desenvolvedores, bibliotecários e, muitas vezes, ex-alunos e stakeholders externos, tais como empregadores.

A capacitação prévia do corpo docente é fundamental para atuar competentemente nesse novo mundo. O planejamento das atividades, a concepção de novas formas de avaliação, a produção e disponibilização organizada de objetos de aprendizagem se somam à mediação que privilegie a participação mais colaborativa e menos centrada nas aulas expositivas.

Chama a atenção como várias organizações alertam que as aulas remotas hoje praticadas não seriam EAD. Há uma incorreção nessa leitura. O que vivenciamos hoje é EAD, só que praticada de forma emergencial e sem contar com os elementos fundamentais para garantir uma boa qualidade.

Primeiramente, a EAD de boa qualidade pede que as trilhas de aprendizagem sejam antecipadamente planejadas, mas abertas o suficiente para permitirem a personalização e os aportes trazidos pelos alunos.  As metodologias ativas são priorizadas. Segundo, o foco deve estar nas horas ativas de estudo dos estudantes e não no tempo de contato acadêmico. Por isso, a discussão sobre o cumprimento exato da carga horária prevista nos currículos é anacrônica nesse contexto.

Os sistemas educacionais permanecerão expostos e vulneráveis, se pensamos em simplesmente reverter ao que fazíamos antes da crise da escola vazia ou se nos basearmos diretamente no que estamos emergencialmente praticando.

A resposta dos sistemas educacionais à pandemia do Covid-19 traz um reconhecimento claro que há prejuízos na experiência escolar centrada exclusivamente em assistir vídeos em um laptop, por exemplo. E quanto mais tenra a idade dos estudantes mais limitado é o sucesso das aulas remotas.

A situação em que nos encontramos é complexa e desafiadora. Um movimento em massa com professores inexperientes, pouco capacitados previamente e com suporte insuficiente tende a não ser tão bem-sucedido quanto desejável. Também há aqueles que foram obrigatoriamente incorporados após terem resistido por anos à EAD. A sala de aula exposta, característica da educação a distância, vai também demonstrar o quanto a abordagem tradicional é profundamente falha.

crise de aprendizagem já percebida em todo o mundo é resultado da ineficácia hoje presente no ensino presencial. Os estudantes se formam nas escolas com déficits significativos em relação ao que deveriam ter aprendido. Os impactos de uma Educação Básica problemática são diretos e prejudicialmente sentidos na também Educação Superior, o que faz girar a máquina perversa da reprodução social, que tem como resultado a ampliação da desigualdade.

O modelo praticado na educação presencial pela maioria dos sistemas educacionais ainda se baseia nas demandas da Sociedade Industrial. No Século XIX, as aulas passaram a ser padronizadas, unidirecionais, centradas no professor e no silêncio obsequioso dos alunos. A organização do currículo é planejada em séries e disciplinas, o que caracteriza uma fragmentação do saber em unidades especializadas do conhecimento que dialogam pouco ou nada entre si. A estrutura hierárquica cristalizada na escola desestimula a participação de alunos e da comunidade. São muitas as características anteriores à Sociedade da Informação que permanecem em vigor, com pouca ou nenhuma modificação.

O problema é quando a EAD tenta replicar o já problemático modelo presencial, o que tende a ampliar os prejuízos na aprendizagem, agora piorados pela desigualdade de acesso às TIC, com fortes impactos negativos junto aos estudantes mais empobrecidos.

A maioria das práticas tradicionais em salas de aula, ora aplicadas no campo digital, baseiam-se em metodologias de behavioristas ensino, desenvolvidas antes de existir uma Internet. Não incorporam a experiência de aprendizagem cooperativa, quando estudantes são convidados a usarem as redes digitais para criarem seu próprio conteúdo, colaborarem entre si e participarem de comunidades virtuais de aprendizagem, no que se torna uma poderosa ferramenta de engajamento e auto-organização.

Em outras palavras, o design tradicional das relações de ensino-aprendizagem presenciais e a abordagem desumanizante e tecnicista da maioria dos modelos de EAD hoje praticados não nos serve mais nesta época em que imaginação, cuidado e consciência são necessários para resolver os grandes problemas do mundo. Não há melhor momento de mudar isso do que na resposta ainda emergente à pandemia atual.

A mudança de larga escala nas instituições e sistemas educacionais pede a adoção da inovação aberta. É preciso incluir famílias, empresas, organizações sem fins lucrativos e governos na construção de uma nova concepção, como já preconizada pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que assusta por sua atualidade.

Outra condição é apoiar as empresas nascentes de base tecnológica que se dedicam a desenvolver soluções para a educação. O Mapeamento Edtech – investigação sobre as startups de tecnologia educacional no Brasil 2020, publicado pela Associação Brasileira de Startups e o Centro de Inovação para a Educação Brasileira, revela que eram 449 edtechs ativas n  o Brasil em 2019, sendo que 70,6% delas oferecem soluções para a Educação Básica – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

O termo edtech surge doacrônimo das palavras education technology – porém,assim como a  palavra startup, ainda não há  um consenso sobre sua definição. Duas características se destacam nesta categoria de empresa: 1) O uso de alguma forma da tecnologia, que significa a aplicação sistemática de conhecimento científico  para tarefas práticas. 2) A tecnologia como facilitadora de processos de aprendizagem e aprimoramento dos sistemas educacionais, gerando efetividade e eficácia.” (ABSTARTUPS e CIEB, 2020).

A tela entre todos nós, obrigatoriamente adotada enquanto trabalhamos remotamente, educamos nossos filhos nas salas de estar e tentamos ensinar os alunos que costumávamos antes encontrar pessoal e diariamente, não precisa ser uma barreira que desperte desconfiança.

A tela entre nós pode ser uma janela ou uma porta, pela qual podemos nos encontrar para manter contato, preservar nossa humanidade tanto apesar do digital quanto potencializada por meio dele.

Será preciso transformar essa tela em um espaço imaginativo, no qual podem ser projetadas imagens e textos que realmente não estavam lá antes, que ocorreram em um momento diferente, mas que possam ser vistas e lidas para despertar emoções e experiências significativas. Para transformar em prol do bem comum.

 

Autor: Luciano Sathler é doutor em Administração pela FEA/USP. Reitor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, em Belo Horizonte (MG), onde ofertou o primeiro curso superior de tecnologia em Ciência de Dados no país. Diretor da Sucesu Minas. Membro do Conselho de Educação da Federação das Indústrias de Minas Gerais – FIEMG. Membro do Comitê de Qualidade da Associação Brasileira de Educação a Distância. Foi o primeiro pró-reitor de educação a distância do Brasil, quando atuou na Universidade Metodista de São Paulo.  

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