Chega ao fim nesta quarta-feira, 5, após cinco anos de vigência, a portaria do Ministério da Educação (MEC) que estabelecia a suspensão da abertura de novos cursos de Medicina no País. A norma foi editada em abril de 2018, durante o governo Michel Temer e com o apoio de entidades médicas, sob o argumento de que era preciso frear o aumento indiscriminado de escolas médicas sem qualidade adequada e discutir critérios para autorização de vagas.
Na prática, porém, milhares de vagas foram criadas durante os cinco anos de moratória por meio de ações judiciais, e o MEC acumula hoje 225 processos pedindo a abertura de novos cursos de Medicina no Brasil. Isso, segundo entidades médicas e educacionais, representaria um incremento de cerca de 20 mil vagas nas quase 42 mil já existentes no País, alta de quase 50%.
Nesta terça-feira, 4, o ministro da Educação, Camilo Santana , confirmou que a portaria da moratória não será prorrogada, mas disse que os critérios que serão adotados a partir de agora para a abertura de novos cursos ainda serão definidos. “Nós assinamos portaria interministerial com o Ministério da Saúde e estamos ouvindo as entidades médicas. Vamos lançar editais ou modelos de autorização de novos cursos e vamos definir os critérios com o Ministério da Saúde; a ideia é que se possa discutir a necessidade de médicos regionalmente”, afirmou.
O presidente do Conselho Federal de Medicina ( CFM ), José Hiran Gallo, disse ao Estadão que esteve com Santana e confirmou que deverá formar um grupo de trabalho com representantes das entidades médicas para discutir os novos critérios.
“A criação do GT sinaliza positivamente no sentido de se buscar uma solução para esse tema. A abertura de escolas médicas não deve ter foco em aspectos quantitativos, mas qualitativos, permitindo-se apenas o funcionamento de instituições localizadas em municípios que ofereçam condições mínimas de infraestrutura para permitir o melhor processo de ensino-aprendizagem”, disse Gallo.
A principal questão a ser respondida é se, a partir de agora, com o fim da suspensão, o governo federal continuará seguindo as regras estabelecidas na Lei do Mais Médicos , de 2013. Ela estabelece que a abertura de novas vagas de Medicina deve ser norteada por chamamentos públicos do MEC, que estabelecem as localidades que podem receber novas escolas médicas. A ideia era descentralizar a oferta de escolas para além dos grandes centros e, assim, ampliar a formação de profissionais no interior do País com a expectativa de que a interiorização dos cursos levasse também a uma melhor distribuição de profissionais em locais de difícil provimento.
O número de vagas de Medicina, de fato, deu um salto desde 2013. De acordo com dados da Demografia Médica, estudo feito pela Faculdade de Medicina da USP em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB), o número passou de 20.570 em 2013 para 41.805 em 2022, aumento de 103%.
A expansão, no entanto, ainda não foi capaz de reduzir de forma expressiva a desigualdade na distribuição de profissionais no País. O número de novos profissionais foi recorde no País no ano passado, mas eles ainda estão concentrados nas capitais e cidades com melhor estrutura. De acordo com dados do CFM, o índice de profissionais é de 6,21 por mil habitantes nas capitais e 1,72 nos municípios do interior.
Outro levantamento feito pelo CFM e obtido com exclusividade pelo Estadão mostra que, das cerca de 21 mil novas vagas abertas nos últimos dez anos, 6 mil foram criadas durante o período de moratória. O número inclui vagas suplementares em cursos já existentes, novos cursos abertos com autorização judicial e processos que haviam sido iniciados antes da portaria da suspensão.
Entidades médicas criticam a efetividade da moratória não só pelas brechas que permitiram a abertura de vagas. De acordo com representantes das instituições, a portaria não cumpriu seu objetivo de usar os cinco anos de suspensão para discutir melhores critérios para a abertura dos cursos.
A Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) afirmou que o grupo de trabalho que foi montado em 2018 para tal discussão ficou mais de quatro anos sem ser acionado. “O grupo de trabalho previsto pela portaria nunca se efetivou a contento, reunindo-se 50 meses após o prazo previsto e, portanto, não produzindo parâmetros adequados para a regulação e expansão de cursos e vagas de Medicina no Brasil”, declarou a entidade. A reportagem procurou, mas não conseguiu contato com representantes da gestão Jair Bolsonaro para comentar as críticas.
As restrições impostas pelo programa Mais Médicos e, posteriormente, pela moratória de abertura de novos cursos, levou a centenas de ações judiciais mencionadas pelo ministro Camilo Santana, a maioria ainda em tramitação. Os autores alegam que tanto as regras da lei de 2013 quanto da portaria de 2018 ferem o princípio da liberdade econômica e poderiam ser consideradas inconstitucionais. A matéria está sendo avaliada pelo Supremo Tribunal Federal.
Após o fim da moratória, o alvo do imbróglio judicial sobre a abertura de cursos de Medicina será a constitucionalidade da Lei do Mais Médicos, que prevê restrições para a criação de novas vagas. Após a enxurrada de liminares para abertura de cursos sob o argumento de que a norma é inconstitucional, a Associação Nacional de Universidades Particulares (ANUP), que tem entre seus associados grupos educacionais que abriram escolas por meio das regras do Mais Médicos, ingressou no Supremo Tribunal Federal ( STF ) com Ação Declaratória de Constitucionalidade defendendo que a abertura de novos cursos esteja, sim, condicionada aos chamamentos públicos do MEC.
A ação ainda não foi julgada. A presidente da entidade, Elizabeth Guedes, afirma que o princípio da liberdade econômica nesse caso não é válido porque o curso de Medicina depende de estruturas públicas ( SUS ) para formar profissionais. “Por usar essa estrutura, deve obedecer uma política pública de saúde e educação.”
Fonte: ESTADÃO